Relatório da Comissão Especial sobre o divórcio e novo casamento,
elaborado pelo Rev. Wadislau Martins Gomes, intutulado "O cristão, o casamento, a realidade do divórcio e do novo casamento, que a CE-SC/IPB-2007 autorizou publicação.
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Alguns anos atrás, o casamento era visto como uma
união para “até que a morte os separe”. Não se esperava que um casamento
pudesse chegar a um final infeliz, ainda que muitos conhecem a infelicidade e a
sua terminação. Contudo, aquilo que era raro a algumas décadas atrás, vai se
tornando mais e mais comum hoje em dia: é crescente o número de divorciados na
nossa sociedade, e até mesmo, na igreja. Como tratar biblicamente essa
realidade enquanto preservamos e pregamos a perenidade do casamento?
Nossa sociedade sofre a fragmentação moral própria de
um processo de secularização no qual valores divinos são deslocados para bases
humanas. Uma ética baseada nos direitos, mais do que nos deveres, frustra os
relacionamentos, produzindo extremo egoísmo. A tensão entre as ênfases social e
individual promove um ambiente de coesão externa e de fragmentação interna em
todas as esferas de autoridade (no homem interior, na família, na igreja e no
estado).
A licenciosidade moral e a liberdade autônoma
dificultam o exercício da fidelidade e da lealdade, atingindo a instituição do
casamento. O casamento deixa de ser um compromisso entre um homem e uma mulher
diante de Deus e dos homens, para ser um acordo de interesses. Muitos
casamentos chegam a uma terminação dolorosa. Muitos dos nossos irmãos já
passaram pelo drama ético do divórcio e ainda não ultrapassaram os seus
problemas.
A igreja precisa aprender a tratar esses casos. Nossos
irmãos precisam de uma visão dos princípios bíblicos sobre o divórcio. Precisam
de capacitação para tratar as diversas perspectivas e dilemas dessa situação,
sendo desafiados à obediência a Deus – certo da esperança de que a fidelidade
de Deus assegurará força e proverá suporte (I Co 10.13).
Muitas das palavras chaves sobre o divórcio se
encontram em 1 Coríntios 7.10-16. Certamente não poderíamos tratar de divórcio
sem mencionar o pacto que estaria sendo rompido: o casamento. Por isso é
importante que consideremos o contexto dessa passagem.
Respondendo a uma pergunta feita por alguém da igreja
de Corinto (depreende-se) à relação entre homem e mulher, Paulo diz que não é
bom o contacto físico indiscriminado, mas sim, a relação monogâmica com
direitos e deveres definidos (7.1-5). O estabelecimento do casamento foi
ordenado e regulado no princípio, na Criação (Gn 1.28; 2.24), corroborado pelo
próprio Senhor Jesus (Mc 10.6-8) e louvado pelo apóstolo Paulo (Ef 5.22-33). No
caso da pergunta levantada na epístola aos Coríntios, o apóstolo não fala do
mandamento, mas dá sua opinião pessoal adequada à natureza da pergunta, de modo
contextualizado (vs. 6-9, cf. v. 26).
Nos versos 10-16, Paulo se dirige a dois grupos de
pessoas: “aos casados” (vs. 10) e “aos mais” (vs. 11). Na verdade, ele não
trata com dois grupos diferentes, mas com dois aspectos diferentes do mesmo
pensamento, isto é, o mandamento do Senhor para cônjuges crentes e a sua
própria aplicação do mandamento a crentes casados com incrédulos.
Aos cônjuges crentes, ele diz que o mandamento do
Senhor, tanto para a mulher quanto para o homem, é que não se divorciem (v.
11). Caso haja separação (certamente por causa da exceção citada em Mt 5.32,
19.9, gr. porneia, fornicação), que
não se casem de novo a fim de possibilitar a reconciliação. Se não houver
reconciliação, a parte que tiver cometido fornicação cometerá ainda adultério
ao contrair novo matrimônio.
Aos que estão “sob jugo desigual”, isto é, crentes
casados com pessoas não crentes, Paulo diz que o cônjuge crente não deve
promover o divórcio, considerando que o cônjuge incrédulo e os filhos são,
cerimonialmente, purificados para a vida em comum, e que poderá ser que o
incrédulo se converta. Se o cônjuge incrédulo quiser se divorciar, o crente
estará libertado do jugo.
O divórcio não é uma solução para os problemas do
casamento, mas, às vezes, um remédio necessário por causa da dureza do coração
humano decaído, para operação da obra redentora na vida das partes envolvidas.
I. Natureza e
propósito do casamento
A natureza do
casamento
O casamento é a instituição divina, na Criação, de uma
aliança terrena entre um homem e uma mulher diante de Deus, que deveria incluir
uma mútua participação de carne e de coração pelo tempo de duração da vida de
um dos cônjuges (1 Co 7.39; Gn. 2.24; Rm 7.2). Deus mesmo ordenou o casamento e
o instituiu como a relação primária da sociedade. Ele não colocou no Éden um
pai, ou uma mãe, e um filho, mas um homem e uma mulher numa união carnal, isto
é, de compromisso espiritual e físico, tanto íntimo quanto familiar. Nos
casamentos subsequentes ao de Adão e Eva, os filhos deveriam “deixar” (isto é,
quando estivessem maduros) a unidade familiar original para formar uma nova
unidade que, igualmente, implicaria união de coração e de corpos. Quaisquer outras
uniões terrenas pressupõem tipos de associação que preservam interesses
individuais. No casamento, além da preservação das responsabilidades
individuais, os pactuantes constituem um só carne. Isso implica a
responsabilidade mútua em relação aos desejos, objetivos e estratégias de vida,
segundo a vontade de Deus. A Confissão de fé de Westminster orienta a matéria:
CAPÍTULO XXIV: DO MATRIMÔNIO E DO DIVÓRCIO:
I. O casamento deve ser entre um homem e uma mulher; ao homem não é
licito ter mais de urna mulher nem à mulher mais de um marido, ao mesmo tempo. Ref.
Gen. 2:24; Mat. 19:4-6; Rom. 7:3.
II. O matrimônio foi ordenado para o mútuo auxílio de marido e mulher,
para a propagação da raça humana por uma sucessão legítima e da Igreja por uma semente
santa, e para impedir a impureza. Ref. Gen. 2:18, e 9:1; Mal.2:15; I Cor.
7:2,9.
III. A todos os que são capazes de dar um consentimento ajuizado, é
lícito casar; mas é dever dos cristãos casar somente no Senhor; portanto, os
que professam a verdadeira religião reformada não devem casar-se com infiéis,
papistas ou outros idólatras; nem elo
jugo do casamento aos que são notoriamente ímpios em suas vidas ou que mantém
heresias perniciosas. Ref. Heb. 13:4; I Tim. 4:3; Gen.24:57-58; I Cor. 7:39; II
Cor. 6:14.
IV. Não devem casar-se as pessoas entre as quais existem os graus de consanguinidade
ou afinidade proibidos na palavra de Deus, tais casamentos incestuosos jamais
poderão tornar-se lícitos pelas leis humanas ou consentimento das partes, de
modo a poderem coabitar como marido e mulher.
Entretanto, a Queda legou a todos a herança maldita da
rebelião contra Deus, da reversão mental para justificar a desobediência à sua
palavra, e a inversão do referencial divino para a auto-referência ou egoísmo.
O resultado disso, especialmente no casamento, é a expectativa do mal em vez da
confiança na bondade de Deus e a mudança do foco do desejo, de Deus para o
homem, e gerou uma luta de poder entre o homem e a mulher. Por causa da
profundidade do pecado, a dureza do coração poderia resultar em separação (Gn
3.16b; Dt 24.1-4; Mt 19.7-8). Por causa de tal dureza de coração, a lei de Deus
dada por intermédio de Moisés permitiu o repúdio, termo usado para se referir à
carta de divórcio, permitido quando houvesse a constatação de “coisa indecente”,
isto é, de impureza moral, sem desejo de reconciliação – por causa da impenitência
do pecador ou da intransigência do ofendido em relação ao perdão. A redenção em
Cristo, contudo, trouxe nova esperança para a situação do casamento nesses
tempos aflitivos de domínio do pecado (ver 1 Co 7.28), restaurando a aliança do
eleito com Deus e capacitando os homens à restauração das alianças terrenas,
incluindo a do casamento. Ao aplicar a redenção em Cristo ao casamento, o
marido ama a mulher, demonstrando-o por meio da entrega pessoal (reflexo da
graça de Deus), e a mulher ama o marido, demonstra-o por meio da recepção
pessoal (exercício do dom da fé) _ ações que, fundadas no amor de Cristo, não
deixariam margem para o divórcio, uma vez que a reconciliação traria a sua paz
à vida comum (Ef 5.21-33; 1 Co 7.15; Cl 3.15; Hb 14.14). A graça de Deus
recebida em fé poria fim à rebeldia, ao auto-engano e ao egoísmo, inibindo as
lutas pelo poder. Daria sentido correto às expressões “cabeça da mulher” e
“submissas ao marido”. Biblicamente, tais expressões não indicam a soberania do
homem sobre a mulher, pois estes são de igual valor e receberam igual poder
para cultivar e guardar a terra, mas dizem respeito à condição decaída da
relação pessoal e à sua redenção consumada em Cristo e aplicada na vida
conjugal (cf. I Co 7.16-17; 1 Pe 3.1-2).
Propósito do casamento
O propósito principal do casamento é cumprir a
finalidade principal do homem de glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. O ser
humano foi criado à imagem de Deus, homem e mulher (Gn 1.26,27), e seu
propósito é o de refletir o caráter de Deus, usufruindo o processo. No
casamento, os cônjuges refletem a glória de Deus um para o outro e destacam a
glória um do outro para que a glória de Deus seja experimentada por ambos, pela
família, pela comunidade da fé e por todos os que estiverem próximos (I Co 11).
A esfera da autoridade do marido compreende a liderança verdadeira e amorosa em
favor da mulher, como Cristo em relação à igreja, e a esfera de autoridade da mulher
compreende a recepção da verdade em amor para a produção de relacionamentos. De
fato, homem e mulher são iguais diante do Senhor, mas com diferentes funções para
o ensino mútuo da relação graça e fé diante de Deus e para a humanidade.
A situação à qual Paulo se atém em I Co 11 é peculiar
à cultura da época e ilustrativa da condição do casamento no mundo decaído. O
comportamento das mulheres (e dos homens) deveria ser pautado pela natureza e
pelo propósito do casamento e não pelo legalismo do uso do véu. Tudo deveria
ser feito em função da glória de Deus, e só poderá ser feito, se essa glória
for refletida de maneira que demonstre a entrega de Cristo e a submissão do
homem na figura singular do casamento (ver Ef 5.22-33).
Não é por acaso que a cerimônia de casamento civil e a de casamento
religioso, ou o casamento religioso com efeito civil, requerem,
diferencialmente, cuidados interessantes como, por exemplo, portas abertas e
acesso franco ao local da cerimônia, declaração pública de assentimento dos
cônjuges e promessas de fidelidade e zelo. De fato, o casamento é uma aliança
entre um homem e uma mulher que, necessariamente, implica uma responsabilidade
em relação à comunidade, pois envolve associação de pessoas físicas, moradia,
adição de filhos, e todas as outras decorrências sociais.
Questões advindas da Queda
Casar ou não casar? Paulo disse que casar ou não casar
é questão de dom e vocação, e de escolha pessoal, e que não há pecado tanto em
casar quanto em não casar (I Co 7.7, 20, 28). Certamente o casamento implica
acréscimo de preocupação por causa da dificuldade dos tempos, em relação à obra
de Deus, e aquele que se casa deverá cuidar primeiro do cônjuge, depois das
coisas de Deus (I Co 7.26, 32-34a). Contudo, em outros lugares, o próprio
Paulo, como outros escritores, realçou a posição elevada ao casamento e atacou
a sua proibição (Ef 5.22-33; I Tm 4.2-3; Hb 13.4).
Casar no Senhor. A expressão casar “somente no
Senhor” tem, às vezes, dado ensejo à pergunta: E se meu casamento não foi feito
no Senhor. Primeiro, casar no Senhor, aqui, significa casar com pessoa que
pertença ao Senhor. Segundo, é a aliança de casamento que é feita no Senhor;
diante dele é que as promessas são feitas, e Ele é o cobrador das promessas
quebradas.
E se o amor acabar? Há quem alegue, até mesmo, que a
falta de amor seja razão suficiente para separação. Para essas pessoas, há,
também, duas observações. A primeira é a de que o amor jamais acaba (I Co
13.8); o que acaba é o sentimento do amor quando a fonte do amor, Deus, não é
considerada (I Jo 3.18-22); o sentimento do amor não é uma causa, mas a consequência
do ato de amor, isto é, do compromisso de amar. A segunda é a de que Deus não
mandou que nos casássemos com a pessoa que amamos – o que é sempre bom! – mas
que amássemos a pessoa com quem nos casamos – o que é muito bom! (Ef 5.28-31.)
II. A realidade do divórcio e ação redentora para
preveni-lo
Realidade do divórcio
O divórcio deveria ser visto como uma solução no
sentido certo do termo, isto é, de solução de continuidade em face de uma
impossibilidade, e não de resolução ou equação de um problema. A quebra de uma
aliança feita diante de Deus e testemunhada pelos homens não deveria ser tomada
como algo sem importância. Em Ml 2.16, Deus diz que odeia o repúdio, e o odeia
porque ele é resultado do pecado e da quebra da aliança (Dt 29.18-21). Se Deus
odeia o divórcio, Ele odeia mais a quebra da aliança, como se pode ver das Suas
palavras a respeito do Seu próprio divórcio do povo de Israel (Is. 50.1).
Também, em Jr 3.8, Ele diz que deu carta de divórcio a Israel por causa da sua
prostituição. Dessa forma, o conceito de divórcio é biblicamente reconhecido e
regulamentado.
Nos tempos bíblicos, o casamento e o divórcio não eram
matérias legais da alçada do estado, mas da religião, tal como ocorreu até
pouco menos de cem anos em nossa Pátria. O fato de o casamento ter amparo na
lei civil não o isenta da responsabilidade diante de Deus e da igreja, posto
que é instituição divina.
Nem todos os divórcios são igualmente injustos. Em Mt
1.19-21, José não foi repreendido pela intenção de abandonar Maria para não
infamá-la com a acusação de fornicação, mas apenas instado a não temer se casar
com ela, pois o Filho havia sido gerado pelo Espírito Santo. José e Maria, eles
estavam noivos, e segundo o costume judeu, vivendo sob o mesmo teto sem que
coabitassem. O Talmude fala expressamente sobre o divórcio após o “noivado”
judaico assim como sobre o divórcio após o casamento. Por isso o texto de Mt 1
diz que José não queria infamá-la dando-lhe carta de divórcio.
Quando Jesus disse que Moisés havia permitido o
divórcio por causa da dureza do coração (Mc 10. 5), ele não quis dizer que
todos os divorciados tivessem corações endurecidos. Ele disse que, por causa do
endurecimento geral que o pecado causa, há situações, nas quais o divórcio é o
procedimento “cirúrgico” adequado para separação de membros irremediavelmente
lesados (Dt 24.1). O próprio Senhor
Jesus disse, pouco antes de falar do divórcio, que seria melhor arrancar um
membro do que lançar no inferno um corpo todo (Mt 5.29-32).
As palavras de Jesus são claras quanto à razão para o
divórcio, isto é, no caso de relações sexuais ilícitas (Mt 5. 31,32). Sem
anular a lei mosaica que permitia o divórcio, ele elevou a lei jurídica ao
aspecto superior da ética do amor verdadeiro, a qual se refere primeiro a Deus
e, depois, ao próximo, dizendo que o repúdio poderia expor o cônjuge repudiado
ao adultério, cuja culpa atingiria, até mesmo, quem se casasse com ele. Isso
não quer dizer que o divórcio seja requerido ou necessário nem que uma queda em
pecado deva ser levada imediatamente até as conseqüências extremas do divórcio.
A expressão “relações sexuais ilícitas” cobre todos os
pecados sexuais, tais como relação com mulher, homossexualismo, pedofilia,
incesto etc. Mas o que dizer de outras espécies de abuso, como agressão física
e psicológica, quando a vida física ou mental do cônjuge ou dos filhos estiver
em jogo? O Antigo Testamento tinha leis específicas para proteger abusos no
caso de poligamia (Dt 21.15-17), a qual era aceita, mas que, segundo o próprio
Senhor Jesus, nunca foi o ideal original do casamento. O Novo Testamento coibiu
a prática irregular corrente, como abuso, do costume poligâmico da época, não
concedendo reconhecimento de capacitação para o ofício eclesiástico a homem que
tivesse mais de uma mulher (I Tm 3.2,12; Tt 1.6). No caso da agressão continuada,
é mais provável que devêssemos buscar guarida na proteção da igreja, a qual
agiria no sentido de disciplinar o problema por meio do aconselhamento, o qual inclui,
até mesmo, a excomunhão (I Co 5). Nesse caso, seria lícito o divórcio.
No entanto, a separação de um membro é sempre algo
grave, e não deveria ser tomado como simples solução de problemas. Noutras
palavras, as razões para um “divórcio consensual” por causa de
“incompatibilidade de gênios”, “incompatibilidade de propósitos”, “término do
amor” ou coisas semelhantes sequer deveriam existir entre cristãos. Também nem
mesmo o adultério exige o divórcio. O divórcio autorizado pela Bíblia não
admite razões levianas, mas sim razões estabelecidas pela Bíblia, como adultério
em que não há arrependimento e reconciliação ou o abandono por parte do cônjuge
incrédulo.
A Confissão de Fé de Westminster orienta também sobre
o divórcio:
V. O adultério ou fornicação cometida depois de um
contrato, sendo descoberto antes do casamento, dá à parte inocente justo motivo
de dissolver o contrato; no caso de adultério depois do casamento, à parte
inocente é lícito propor divórcio, e depois de obter o divórcio casar com
outrem, como se a parte infiel fosse morta. Ref. Mat, 1: 18-20, e 5:31-32, e
19:9.
VI. Posto que a corrupção do homem seja tal que o
incline a procurar argumentos a fim de indevidamente separar aqueles que Deus
uniu em matrimônio, contudo só é causa suficiente para dissolver os laços do
matrimônio o adultério ou uma deserção tão obstinada que não possa ser
remediada nem pela Igreja nem pelo magistrado civil; para a dissolução do
matrimônio é necessário haver um processo público e regular. não se devendo
deixar ao arbítrio e discreção das partes o decidirem seu próprio caso. Ref.
Mat. 19:6-8; I Cor. 7:15; Deut. 24:1-4; Esdras 10:3.
Prevenção
“Disciplina” na igreja é hoje um assunto mal
compreendido. Em vez de a idéia de ordem imposta ou livremente consentida, é
comum pensar sobre ela como uma punição imposta. Assim, a lassidão no dever de
manter a disciplina na igreja – tanto por causa do temor da vergonha e do
desejo de se furtar à punição quanto por causa do incômodo que a tarefa de
enfrentar a situação causa à liderança – rouba aos crentes o aspecto
transformador da obediência à Palavra como a instrução, correção, repreensão e
educação na justiça (II Tm 3.16, 17).
O Senhor Jesus ofereceu, em Mt 18.15-29, uma visão
geral da disciplina dinâmica, a qual é extremamente útil como prevenção de
conclusões infelizes nos casos de crise. Aplicado ao divórcio, poderíamos ler
assim: quando um cônjuge pecar gravemente contra o outro de modo que haja base
para divórcio, a parte ofendida terá de, primeiro, arguir o ofensor, somente
entre eles. Se o ofensor ouvir da maneira correta, os irmãos casados estarão
reconciliados; e terão matado a raiz de um divórcio. Mesmo quando o pecado não
constitui base para divórcio, essa primeira ação deverá ser exercitada. Infelizmente,
tão logo surgem os primeiros problemas, tanto o marido quanto a mulher começam
a se queixar, primeiros aos filhos, e depois, aos amigos, o que constitui maledicência
e só agrava a situação.
Continuando: se, porém, não houver arrependimento, o cônjuge
ofendido deverá tomar duas testemunhas fiéis dentre os crentes da igreja a fim
de estabelecer toda palavra. Esses crentes fiéis, presbíteros ou pessoas
amadurecidas, não funcionam somente como “testemunhas de acusação” mas,
principalmente, como conselheiros no estabelecimento da Palavra de Deus. Tal
procedimento deveria bastar para que a situação não evoluísse para um divórcio.
Na maioria das vezes, a ajuda só é pedida quando a crise já alcançou proporções
emocionais que não mais possibilitam uma conversa conciliatória.
Prosseguindo: E, se o ofensor ainda não os atender, o caso terá de
chegar ao conhecimento dos presbíteros da igreja. O conselho de presbíteros de
uma igreja madura não age, primariamente, como administrador nem como juiz dos
seus membros, mas como um colégio de pastores que cuida do rebanho, cuja missão
é pregar e viver o evangelho da reconciliação (II Co 5.18-21). Se o cônjuge
ofensor se recusar a ouvir também a igreja, aí então, poderá ser tratado como
se fosse incrédulo, e nesse caso, haveria possibilidade (não exigência ou
necessidade) de um divórcio biblicamente assegurado. A promessa do Senhor é a
de que tudo o que for ligado ou desligado na terra segundo essa dinâmica, tem a
sanção divina, pois Deus está no meio da igreja.
III. Divorciado. E agora?
Ainda há esperança. Até mesmo depois de um casamento
ter chegado à conclusão drástica do divórcio, ainda existirá esperança para o
casal. Por isso Paulo diz que, se alguém viesse a se separar do cônjuge, não
deveria se casar de novo a fim de permitir a reconciliação (1 Co 7.11). Os
afetos do coração, quanto distorcidos, como já consideramos, poderão limitar a
possibilidade dessa reconciliação. Contudo, poderão, também, ser expandidos para
abraçar o coração do outro cônjuge (2 Co 6.12,13) por meio do arrependimento,
isto é, da confissão e do perdão. Observe que essa opção é levantada por Paulo
em relação a crentes; quanto ao divórcio movido por um incrédulo, a Palavra desobriga
o crente do compromisso matrimonial, ainda que não o abrigue ao divórcio (1 Co
7.15).
O outro. Ainda que o casamento tenha terminado, para que haja
saúde espiritual tanto para os divorciados quanto para o corpo de Cristo,
continua havendo uma responsabilidade fraterna de amor a ser cumprida. Se duas
pessoas caírem num buraco, ambas deverão sair dele a fim de que nenhuma delas
fique presa ao passado. É claro que nem sempre será possível haver amizade,
como no caso de um dos envolvidos continuar faccioso (Tt. 3.10,11), mas, quando
possível, quando depender de uma pessoa, deverá haver paz entre os irmãos (Rm
12.18).
Filhos. Na maioria das vezes, os filhos já sofreram o
desgaste advindo da situação e dos problemas dos pais, mas, ainda que tenham
sido tomados de surpresa, a experiência do divórcio dos pais é sempre danosa.
Fica neles um sentimento de ira (“de quem é a culpa?”) de inadequação (“de que
lado eu fico?”), de falta de valor (“nem me consideraram...”), de culpa (“que
foi que eu fiz”) e de frustração (“o que eu poderia ter feito?”). O fim do
casamento não termina a responsabilidade dos pais. É preciso, ainda mais, que o
amor lhes seja provado, uma vez que a prática lhes ensinou que o amor entre os
pais não dependeu de Deus, mas de motivações internas e de condicionamentos externos.
Igreja. A igreja não pode considerar o divórcio como sendo
coisa corriqueira nem deve considerar todo divórcio como sendo um pecado
inaceitável. Se o processo de divórcio correu de forma adequada, e a igreja não
cedeu seu direito divino de operar no casamento, então o divórcio terá sido
declarado lícito ou ilícito. Se ocorreu uma separação não aprovada pela
Palavra, certamente, a(s) parte(s) ofensora(s), estaria(m) disciplinada(s) e,
possivelmente, restaurada(s) , e nesse caso, o tratamento da igreja deverá ser
o de orar e trabalhar pela reabilitação do(s) crente(s). Se o divórcio estiver dentro
dos padrões bíblicos, a parte ofensora, se for crente, deveria estar
disciplinada e, possivelmente, restaurada, e a parte ofendida deveria estar livre
para seguir sua vida sendo honrada e amada por todos. Como nem sempre a igreja
está livre de ignorância e de preconceito, cabe aos seus líderes orientá-la na
Palavra para que ela conheça a sua parte de responsabilidade e exerça seu
ministério.
Contemplando novo casamento
Quando o apóstolo Paulo se dirige às viúvas jovens,
ele defende um novo casamento para evitar a leviandade (1 Tm 5.14). Ele
defenderia, também, um novo casamento de pessoa divorciada? Em I Co 7.15, ele
diz que a pessoa abandonada pelo cônjuge incrédulo não está mais sujeito à
servidão, mas esta livre. Para que? Certamente, para se casar, pois para todas
as demais coisas lícitas e convenientes já existe essa liberdade. Especialmente,
em I Co 7.27,28, Paulo diz que se alguém ficou foi liberto do jugo matrimonial,
não estaria pecando caso se casasse de novo. No texto grego, a palavra usada nas
duas instâncias para tradução da expressão “estás livre”, é a mesma (luo),
significando “liberto”. De outro modo, não haveria o contraste pretendido pelo
escritor. A questão é se a natureza do divórcio permite ou não um novo
casamento. Segundo o que vimos, quem comete adultério da natureza do casamento,
quer mediante ato sexual ilícito quer por meio do abandono quer em função de
agressão contumaz, não estaria apto a um segundo casamento e estaria expondo o
novo cônjuge ao adultério. Contudo, dever-se-á levar em conta que a conversão
de pessoas com um passado não recomendável é contemplada na Escritura (1 Co
5.14-19; 6.9-11; 2 Co 2.7). As combinações de diferentes aspectos do problema
são muitos e só poderão ser tratados por meio de princípios gerais. Por
exemplo, a prostituta convertida estaria apta a gozar de plenos privilégios na
igreja? O que dizer de Raabe? E um adúltero arrependido, poderia resgatar um
casamento que iniciado inadequadamente? Que dizer de Davi e Bate-Seba? Não
podemos minimizar a questão do divórcio, mas não podemos, também minimizar o
poder restaurador da graça de Deus. Não existe uma resposta “sim ou não”. A
igreja terá de depender do Espírito de Deus, em cada caso, para iluminar o entendimento
no estudo da Palavra e encontrar a satisfação da verdade e do amor de Deus nas
situações humanas.
Conclusão
Esta é apenas uma visão panorâmica dos princípios
bíblicos sobre o divórcio, procurando habilitar o crente a tratar as diversas
perspectivas e dilemas dessa situação. O conhecimento da Palavra e a sabedoria
concedida pela iluminação do Espírito deverão desafiá-lo à obediência da
verdade em amor – certo da esperança de que a fidelidade de Deus assegurará
força e proverá suporte (I Co 10.13). O divórcio não é uma solução, mas, às
vezes, um remédio, por causa da dureza do coração humano decaído o qual precisa
de uma solução redentora para as partes envolvidas. Para isso, é preciso sempre
assegurar de:
(1) que as pessoas envolvidas estejam libertadas de
todas as obrigações passadas;
(2) que tenham buscado o perdão de Deus de todas as
pessoas envolvidas no processo (Deus, cônjuge, filhos, familiares indiretos,
igreja, etc.);
(3) que todos os esforços tenham sido feitos para a
reconciliação;
(4) que todos os esforços tenham sido feitos para
corrigir os erros passíveis de serem corrigidos. Além disso, as pessoas
envolvidas no processo deverão sempre buscar aconselhamento com o pastor da
igreja a fim de que nenhuma raiz de amargura venha a brotar e a contaminar a
muitos (Hb 12.14-17).